Nas comunidades ribeirinhas e isoladas do Pantanal sul-mato-grossense, onde a tradição oral sempre foi o principal meio de transmissão de conhecimentos, Simone Tebet lidera uma iniciativa pioneira para registrar e preservar histórias que, de outra forma, poderiam desaparecer com o passar do tempo.
Lançado em 2019, o "Projeto Vozes do Pantanal" já documentou mais de 300 narrativas orais de moradores antigos da região, criando um valioso acervo de memórias, lendas, saberes tradicionais e técnicas ancestrais que constituem parte fundamental do patrimônio imaterial pantaneiro.
O Nascimento do Projeto
A ideia surgiu durante uma visita de Simone à comunidade de Porto Esperança, quando ela conheceu Seu Juvenal, um pescador de 92 anos que era considerado o guardião das histórias locais. "Percebi que ele carregava consigo histórias incríveis que ninguém havia registrado. Quando ele se fosse, aquelas histórias iriam com ele", relembra Simone.
Essa constatação a levou a reunir uma pequena equipe de antropólogos, historiadores e técnicos audiovisuais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul para iniciar o registro sistemático das histórias orais pantaneiras, começando justamente com Seu Juvenal.
"Cada idoso que parte leva consigo uma biblioteca de conhecimentos. Nosso trabalho é garantir que essas bibliotecas vivas sejam preservadas para as futuras gerações, mantendo viva a alma do Pantanal." — Simone Tebet
Metodologia e Abrangência
O projeto se estrutura em expedições regulares às comunidades pantaneiras mais isoladas, onde a equipe realiza entrevistas em profundidade com os moradores mais antigos, priorizando aqueles com mais de 70 anos. As entrevistas são filmadas e gravadas em áudio de alta qualidade, posteriormente transcritas e catalogadas.
Até o momento, o projeto já percorreu 27 comunidades em nove municípios do Pantanal sul-mato-grossense, documentando histórias que abrangem desde o período da Guerra do Paraguai até os dias atuais, passando por eventos marcantes como as grandes cheias, períodos de seca extrema e transformações socioeconômicas da região.
Categorias de Histórias
O acervo do "Vozes do Pantanal" está organizado em cinco categorias principais:
- Lendas e Mitos: narrativas sobrenaturais tradicionais da região, como o Minhocão, o Negrinho d'Água e o Lobisomem Pantaneiro;
- Saberes Tradicionais: técnicas ancestrais de pesca, caça, navegação, construção de moradias e previsão de fenômenos naturais;
- Medicina Popular: conhecimento sobre ervas medicinais, rituais de cura e práticas de saúde tradicionais;
- Histórias de Vida: narrativas autobiográficas que revelam o cotidiano, desafios e transformações da vida pantaneira;
- Eventos Históricos: relatos sobre acontecimentos marcantes da história regional a partir da perspectiva dos moradores locais.
Plataforma Digital e Acessibilidade
Uma inovação importante implementada por Simone foi a criação da plataforma digital "Memória Pantaneira", que disponibiliza online grande parte do acervo coletado. O site, de navegação intuitiva e adaptado para funcionar mesmo com conexões de internet precárias, permite que as próprias comunidades acessem suas histórias e as utilizem em atividades educativas e culturais.
"Era fundamental que essas histórias retornassem às suas comunidades de origem. Não queríamos apenas coletar, mas garantir que esse patrimônio permanecesse vivo e acessível para os próprios pantaneiros", explica Simone.
Impacto nas Escolas
Um dos desdobramentos mais significativos do projeto tem sido sua aplicação pedagógica. Em parceria com a Secretaria Estadual de Educação, Simone desenvolveu o programa "Pantanal na Sala de Aula", que incorpora as histórias orais coletadas no currículo escolar dos municípios pantaneiros.
Mais de 50 escolas já utilizam o material do "Vozes do Pantanal" em atividades educativas, ajudando a fortalecer o vínculo das novas gerações com suas raízes culturais e estimulando o respeito pelos mais velhos como portadores de conhecimentos valiosos.
Reconhecimento e Expansão
Em 2022, o "Projeto Vozes do Pantanal" foi reconhecido pela UNESCO como modelo de preservação de patrimônio imaterial, sendo incluído em sua lista de boas práticas de salvaguarda cultural. Este reconhecimento internacional trouxe novos parceiros e recursos para a iniciativa.
Para os próximos anos, Simone planeja expandir o projeto para incluir comunidades indígenas e quilombolas da região, incorporando suas perspectivas únicas e fortalecendo a representatividade do acervo. Além disso, está em desenvolvimento um aplicativo que permitirá aos próprios moradores registrarem suas histórias de forma autônoma.
Com sensibilidade e visão estratégica, Simone Tebet tem construído, através do "Projeto Vozes do Pantanal", uma ponte entre passado e futuro, garantindo que as ricas narrativas que moldaram a identidade pantaneira continuem a inspirar e orientar as novas gerações, mantendo viva a memória coletiva de um dos ecossistemas mais singulares do Brasil.